“Nós, os Povos das Nações Unidas”
Em homenagem ao 80º aniversário da Carta das Nações Unidas, apresentamos um artigo do Boletim da ONU de 24 de junho de 1947 sobre a história da Carta.
EM 26 DE JUNHO DE 1945, os povos das Nações Unidas, por meio de seus representantes reunidos em São Francisco, estabeleceram uma nova organização global para promover os ideais pelos quais haviam lutado na guerra mais trágica da história.
Ao dar esse passo monumental, os povos amantes da liberdade afirmaram que o espírito de cooperação e unidade de propósito — que havia possibilitado a vitória militar — deveria ser mantido para enfrentar o desafio da paz.
Essa consciência de que as nações deveriam permanecer unidas não foi fruto do acaso nem de uma decisão repentina. Duas guerras mundiais em uma única geração — guerras que alcançaram todos os cantos do globo e envolveram todos os segmentos da humanidade — deixaram uma conclusão inescapável: que a paz e a segurança pelas quais a humanidade ansiava há séculos só poderiam ser alcançadas por meio de uma parceria contínua e da vigilância de todos os povos do mundo. A cada ano, as armas de destruição assumiam um potencial cada vez mais aterrorizante, e uma terceira guerra mundial poderia destruir as bases da civilização.
Por trás da assinatura da Carta das Nações Unidas está a história das antigas tentativas da humanidade de agir coletivamente para que a paz e a segurança fossem alcançadas. Alguns dos poetas e filósofos mais ilustres do mundo delinearam planos para uma federação viável de nações. Em 1313, Dante propôs uma união europeia sob um único governante benevolente. Em 1713, o abade Saint-Pierre defendeu uma aliança perpétua dos Estados europeus e a arbitragem compulsória para resolver disputas. Jeremy Bentham propôs a redução de armamentos e o estabelecimento de uma "legislatura comum", enquanto Immanuel Kant favorecia uma federação geral de Estados, universal em escopo, que abrangesse todos os povos do mundo.
Primeiras Ações Aliadas
“A primeira ação formal das nações aliadas para trabalhar juntas pela preservação da paz foi a Conferência Interaliada no Palácio de St. James, em Londres, em 12 de junho de 1941.”
Durante o século 19, o movimento pacifista cresceu rapidamente, e em 1914 já existiam cerca de 150 organizações de paz no mundo. Durante a Primeira Guerra Mundial, muitas dessas entidades discutiram a possibilidade de criar uma liga internacional após o fim das hostilidades. O governo britânico nomeou um comitê para elaborar um plano de uma Liga de Nações. Enquanto isso, Woodrow Wilson e o general Smuts também formulavam ideias para uma organização internacional de paz. Desses esforços surgiu um esboço que, com alterações, deu origem ao Pacto da Liga das Nações.
De 1920 a 1930, a Liga teve maior êxito na área não política: saúde pública, melhoria das condições de trabalho pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), controle do tráfico de drogas, entre outros. Mas a década de 1930 foi marcada por agressões incontroladas, culminando no início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939. A virada da guerra só começou no verão de 1943, com a resistência soviética em Stalingrado. A cooperação militar e econômica desenvolvida forçadamente pelos Aliados nos primeiros anos críticos acabou sendo essencial para o nascimento das Nações Unidas.
A Carta do Atlântico
Em agosto de 1941, enquanto a guerra avançava na Rússia e no sudeste da Europa, e a Batalha do Atlântico se intensificava, foi anunciada uma reunião entre o presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill "em algum lugar do mar". Em 14 de agosto, eles divulgaram a chamada Carta do Atlântico.
A declaração não era um tratado formal, mas expunha princípios comuns sobre os quais baseavam suas esperanças para um futuro melhor. Defendia o direito dos povos à autodeterminação, o livre acesso ao comércio e matérias-primas, e a colaboração econômica internacional para melhores padrões trabalhistas e segurança social.
Os pontos seis e oito da Carta relacionavam-se diretamente à criação de uma organização mundial. Após a derrota do nazismo, previa-se uma paz duradoura com liberdade para todas as pessoas, bem como o abandono do uso da força e a criação de um sistema permanente de segurança coletiva.
A Carta do Atlântico não só deu esperança em um momento sombrio, como comprometeu os signatários a estabelecer uma organização internacional — compromisso que se fortaleceu nas conferências aliadas seguintes.
Declaração das Nações Unidas
O segundo elo da cadeia que levou à Carta foi a Declaração das Nações Unidas, assinada em 1º de janeiro de 1942 em Washington, por 26 países em guerra contra o Eixo. Era a primeira vez que se usava a expressão “Nações Unidas”.
Esses países se comprometeram a empregar todos os recursos para derrotar o Eixo e não firmar acordos de paz separados. Até abril de 1945, quando a Conferência de São Francisco foi aberta, o número de signatários havia crescido para 47.
Mesmo em meio à guerra, trabalhos construtivos para uma organização internacional do pós-guerra prosseguiram.
Conferências de Moscou, Cairo e Teerã
Em 1943, três conferências reforçaram esse compromisso.
“Em Moscou, os Estados Unidos, o Reino Unido, a União Soviética e a China reconheceram a necessidade de criar uma organização internacional baseada na igualdade soberana de todos os Estados amantes da paz.”
Essa meta foi reiterada no Cairo e em Teerã, com compromissos mais concretos para um mundo livre da tirania, escravidão, opressão e intolerância.
Passos Econômicos e Sociais
Além dos compromissos políticos, os Aliados atuaram para enfrentar causas econômicas e sociais da guerra. Em maio de 1943, 44 países participaram da Conferência de Alimentação e Agricultura, que levou à criação da FAO. Em novembro, foi fundada a Administração das Nações Unidas para o Socorro e a Reabilitação (UNRRA), que forneceu ajuda emergencial e apoio à reconstrução em países devastados pela guerra.
Em julho de 1944, a Conferência de Bretton Woods criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, preparando o terreno para uma economia mundial estável e próspera.
Dumbarton Oaks
Logo após Bretton Woods, representantes dos EUA, União Soviética, Reino Unido e, depois, China, reuniram-se em Washington para esboçar os termos da nova organização. As “Propostas de Dumbarton Oaks” serviram como base para debate público e preparação da conferência de São Francisco.
Propunham a criação da ONU, com uma Assembleia Geral, um Conselho de Segurança, uma Corte Internacional de Justiça e um Secretariado, além de um Conselho Econômico e Social.
Yalta
Em fevereiro de 1945, na Crimeia, Roosevelt, Churchill e Stalin anunciaram a realização da Conferência de São Francisco, marcada para abril. A questão do voto no Conselho de Segurança foi resolvida, mas o plano seria divulgado após consulta à China e França.
“Franklin Delano Roosevelt morreu em 12 de abril, poucos dias antes da conferência, e coube a outros líderes concretizar o projeto.”
São Francisco
A Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional reuniu-se de 25 de abril a 26 de junho de 1945. Mais de 850 delegados e milhares de jornalistas, assessores e representantes de ONGs compareceram. As negociações aconteceram em quatro comissões principais, com 12 comitês.
O texto final da Carta trouxe alterações significativas às propostas de Dumbarton Oaks. Foi incluído um Preâmbulo, uma Declaração sobre Territórios Não Autônomos, o Sistema de Tutela e o Conselho de Tutela. A Assembleia Geral teve seus poderes ampliados e o Conselho Econômico e Social passou a ser um dos seis órgãos principais. A conferência também elaborou o estatuto da nova Corte Internacional de Justiça.
Em 25 de junho, a Carta foi adotada por unanimidade. No dia seguinte, em uma cerimônia de sete horas, os delegados assinaram o documento histórico.
“A China, primeira vítima da agressão do Eixo, teve a honra de assinar primeiro. Ao final, 153 assinaturas estavam registradas.”
O presidente Truman encerrou a conferência com um discurso memorável:
“Se tivéssemos tido esta Carta há alguns anos — e, acima de tudo, a vontade de usá-la — milhões agora mortos estariam vivos. Se vacilarmos no futuro em nossa vontade de usá-la, milhões que hoje vivem certamente morrerão.”
Este artigo foi escrito e publicado pela primeira vez no Boletim Semanal das Nações Unidas, antecessor do UN Chronicle, em 24 de junho de 1947 (Volume II, nº 24). Acesse a versão original: https://www.un.org/en/un-chronicle/story-charter
Para saber mais, visite a página especial da ONU Brasil sobre os 80 anos das Nações Unidas.