Justiça venezuelana auxilia na repressão, revela investigação de direitos humanos da ONU
17 setembro 2021
- A Missão Internacional Independente de Apuração dos Fatos sobre a República Bolivariana da Venezuela do Conselho de Direitos Humanos da ONU revelou em seu último relatório dados preocupantes sobre a situação atual do sistema judiciário venezuelano.
- A resposta do sistema do país a crimes governamentais tem preocupado a Missão, que através de entrevistas e análise de documentos oficiais revelam frequente interferência do governo nos processos, ausência de apoio às vítimas e réus, e violações do devido processo legal como um todo.
- 183 detenções de opositores do governo foram analisadas entre 2014 e agosto de 2021 e revelam irregularidades “que burlam todas as fases do processo penal”.
- As violações do devido processo legal colaboram com as medidas de repressão e violações dos direitos humanos no país. Destas, muitas podem ser considerados crimes contra a humanidade, como assassinatos arbitrários e tortura sistemática.
A independência do sistema judiciário da Venezuela foi “profundamente erodida” a tal ponto que a Justiça no país desempenha um papel significativo na repressão do Estado à oposição do governo, relataram na quinta-feira (16) os especialistas em direitos humanos independentes nomeados pelas Nações Unidas.
Em seu segundo relatório, sob o mandato do Conselho de Direitos Humanos, a Missão Internacional Independente de Apuração dos Fatos sobre a República Bolivariana da Venezuela alegou que juízes no país permitiram a utilização de provas apresentadas por promotores obtidas por meio de tortura, entre outras violações "recorrentes" do devido processo legal.
“Em alguns dos casos analisados, os juízes também não protegeram as vítimas de tortura ordenando que elas retornassem aos locais de detenção onde a tortura supostamente ocorreu, mesmo depois de terem ouvido as alegações das vítimas em tribunal - às vezes com lesões visíveis consistentes com tortura,” relatou a Missão em um comunicado oficial.
Perpetuando a repressão - “Com base nas investigações e análises realizadas, a Missão tem motivos razoáveis para acreditar que, em vez de fornecer proteção às vítimas de violações de direitos humanos e crimes, o sistema de justiça venezuelano desempenhou um papel significativo na repressão do Estado quando se trata crimes governamentais”, disse a presidente da Missão de Investigação, Marta Valiñas, em coletiva de imprensa paralela ao Conselho de Direitos Humanos em Genebra.
As conclusões da Missão baseiam-se em 177 entrevistas, muitas delas com atores do sistema judiciário, bem como em uma pesquisa com ex-juízes, promotores e advogados de defesa venezuelanos, e na análise de milhares de páginas de arquivos de processos judiciais e outros documentos oficiais.
Uma análise detalhada também foi realizada em 183 detenções de opositores do governo “reais ou presumidos” - 153 homens e 30 mulheres, cerca de metade civis e metade militares - entre 2014 e agosto de 2021, revelando irregularidades “que burlam todas as fases do processo penal”.
Destacando a frequente interferência do governo nos processos, Valiñas apontou que em 102 dos 183 casos examinados “a Missão registrou que funcionários públicos de alto escalão fizeram declarações públicas comentando sobre processos criminais envolvendo oponentes reais ou presumidos, tanto antes como logo após sua detenção”.
'Vilanizados e intimidados' - Juízes e promotores foram nomeados com base em contratos temporários e os juízes que se recusaram a ceder à pressão política "foram caluniados e intimidados", relatou a Missão, observando que desde 1999, pelo menos uma dúzia de novas leis e resoluções tiveram impacto adverso na independência judicial.
Entre as irregularidades processuais identificadas, os relatores apontaram longos atrasos processuais que negaram aos réus a oportunidade de contestar as provas contra eles, “obstáculos e assédio” enfrentados pelos advogados de defesa e detenção pré-julgamento além do limite constitucional de 24 meses.
“Dos 170 casos analisados que envolveram comparecimentos iniciais, em 146 deles, a prisão preventiva foi ordenada por juízes”, disse o relator da Missão, Francisco Cox Vial. “Desses 80 - o que representa 47% deles - a prisão durou mais de dois anos.”
A Missão também examinou casos documentados em 2020 de forças de inteligência do Estado que sujeitaram homens e mulheres detidas a desaparecimentos forçados, tortura - incluindo violência sexual - e morte.
Sem investigações - Nenhuma evidência foi encontrada de oficiais de alto escalão sendo investigados ou processados nesses incidentes, ou em qualquer outro caso que tenham investigado desde então, relataram.
Casos de destaque incluem o de Fernando Albán, o líder da oposição que morreu após cair do 10º andar da sede do Serviço Nacional de Inteligência Bolivariano (SEBIN) em 2015; Rafael Acosta Arévalo, um oficial militar que desmaiou e morreu em um tribunal de Caracas após tortura em 2018; e Juan Pablo Pernalete, um estudante que morreu depois que uma bomba de gás lacrimogêneo atingiu seu peito à queima-roupa durante um protesto em Caracas em 2017.
“A Missão constatou que as acusações recentes apresentadas nesses casos são altamente limitadas em escopo e/ou focadas no isolamento de perpetradores de baixo escalão, ao invés de buscar responsabilização mais acima na cadeia de comando”, reportou o órgão da ONU.
O relator Francisco Cox Vial acrescentou: “Documentamos tanto neste relatório quanto no relatório anterior que os militares estão sujeitos a violações e torturas e outras situações”.
O último relatório da Missão complementa seu relatório de setembro de 2020, que encontrou motivos razoáveis para acreditar que as autoridades venezuelanas de alto nível e as forças de segurança planejaram e executaram graves violações dos direitos humanos desde 2014. Isso inclui assassinatos arbitrários e tortura sistemática, que podem ser considerados crimes contra a humanidade.