Ballet Manguinhos volta aos palcos encenando resistência e inspiração
Escola de dança de comunidade no Rio de Janeiro superou desafios da pandemia de COVID-19 para apresentar espetáculo sobre a história de mulheres inspiradoras
Uma mistura de lágrimas, entusiasmo, ansiedade e vontade de reafirmar a dança como resistência e arte. Foi assim que a diretora administrativa do Ballet Manguinhos, Carine Lopes, descreveu o retorno do grupo aos palcos. O balé urbano, que atende gratuitamente 250 crianças e jovens do complexo de favelas Manguinhos, no Rio de Janeiro, apresentou seu espetáculo anual no dia 15 de novembro, após meses de paralisação das aulas.
“Mulher: poder e resistência”, narrou por meio de coreografias a história de dez mulheres inspiradoras. Entre elas, a diplomata brasileira Bertha Lutz, cuja participação na redação da Carta das Nações Unidas resultou na menção à igualdade de gênero no documento, tema até então inédito em um tratado internacional.
“Esta apresentação foi muito diferente. Já fizemos sete espetáculos nos nossos quase 10 anos de história, mas neste a vontade de mostrar, reafirmar a arte e voltar a dançar deram essa sensação mágica. As bailarinas choravam nas coxias”, lembra Carine. “Este é o único momento que os alunos e alunas têm para se afirmarem como artistas. Trabalhamos com crianças e jovens que não acessam espaços culturais no seu dia a dia. Então, quando eles conseguem se ver dentro de um teatro de mil lugares, como o Riachuelo, e ainda no papel principal, é algo emocionante.”
Com o avanço da vacinação contra a COVID-19 e o retorno gradual de atividades presenciais, executar um espetáculo musical, após meses de confinamento, já seria motivo suficiente para causar euforia no grupo de dança. Mas junto com a companhia, também entrou no palco o esforço do Ballet Manguinhos para superar outros obstáculos causados pela doença, que agravaram ainda mais a situação das famílias que moram em uma das regiões com o Índice de Desenvolvimento Humano mais baixos do Rio de Janeiro: a fome e o luto.
Em janeiro, após perder a fundadora do grupo para a COVID-19-- a bailarina Daiana Ferreira, de 32 anos--, o grupo escolheu mergulhar nas campanhas de prevenção contra a doença. Desde panfletagem na comunidade até promoção de testagem em massa e distribuição de máscaras, o Ballet Manguinhos manteve vivo o ativismo de sua fundadora também fazendo campanhas de arrecadação de alimentos, produtos de higiene, absorventes e de equipamentos eletrônicos, a fim de tentar manter contato com os membros do Ballet, ainda que de maneira virtual.
“A dança expressa o que eu sinto e por causa do balé eu pude conhecer pessoas e lugares novos. Então, voltar aos palcos, em um momento tão importante, onde a gente lembraria da Daiana, foi muito emocionante. Estava ansiosa”, conta Anna Júlia Martins da Silva, de 14 anos, moradora da Favela do Mandela e aluna do Ballet Manguinhos há seis anos. No espetáculo, Anna dançou as histórias da cantora Elza Soares, Anne Frank e da astronauta Valentina Tereshkova. “Eu me sinto bem sabendo que podemos ser uma inspiração para outras meninas e motivar as pessoas da nossa comunidade”.
O projeto - Funcionando em um prédio de 600 metros quadrados na Avenida dos Democráticos, o Ballet Manguinhos oferece 15 turmas de balé e duas de circo, para crianças e jovens entre seis e 29 anos. No total, a formação completa na escola dura oito anos. Em 2021, pela primeira vez, o projeto também passou a contar com três turmas de muay thai (boxe tailandês) dentro do programa “Respeita as Minas”, que promove uma série de atividades referentes à conscientização sobre a violência contra a mulher.
Em 2021, o Ballet Manguinhos participou do programa “Uma Vitória leva à Outra”, projeto de editais da ONU Mulheres e do Comitê Olímpico Internacional, em parceria com as ONGs Women Win e Empodera. Através da ação de empoderamento de meninas pelo esporte, 90 meninas tiveram aulas de ginástica rítmica no Ballet Manguinhos por três meses. “O programa trouxe uma série de discussões muito relevantes para as meninas, sobre o que significa ser mulher na sociedade hoje, autoconhecimento, sobre o esporte em si, sexualidade e muitas outras coisas válidas e importantes para a vida delas. No ano que vem pretendemos nos inscrever novamente”, conta Carine.
Esta, no entanto, não foi a única parceria entre o Ballet Manguinhos e a Organização das Nações Unidas. Na edição 2020 dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra Meninas e Mulheres, a companhia montou uma coreografia especial para marcar a campanha “Onde você está que não me vê?”, unindo o balé clássico e o funk com a trilha sonora de MC Tha.
Futuro - São oportunidades como essas, aliadas a capacidade do grupo em promover importantes mudanças sociais, que explicam porque a fila de espera por uma vaga ultrapassa os 500 nomes. “Temos um índice de gravidez na adolescência, entre as mais de três mil alunas que já passaram pelo Ballet, menor do que 1% e a gravidez na adolescência é algo cultural no território. Por isso temos que continuar este trabalho. Já fizemos muito e podemos fazer ainda mais”, diz Carine.
Com o contrato de patrocínio prestes a encerrar, o Ballet agora busca uma nova forma de financiar suas atividades para 2022. Apesar do momento de tensão, Carine está confiante e tem certeza que o espetáculo “Mulher: poder e resistência” não foi a última apresentação de grande porte do Ballet Manguinhos. “Este é o legado que a Daiana nos deixou. A memória dela é uma memória de luta, do desejo de tirar crianças da ociosidade e mostrar uma outra realidade, que não apenas a da violência. Não vamos parar.”