EXCLUSIVO: Diplomata brasileira foi essencial para menção à igualdade de gênero na Carta da ONU
09 novembro 2016
- A Carta da ONU, documento elaborado durante a conferência de San Francisco (Estados Unidos) em 1945 que deu origem às Nações Unidas, foi um dos primeiros tratados internacionais a mencionar em seu texto a necessidade de igualdade de direitos entre homens e mulheres.
- Esse feito, por muito tempo atribuído a diplomatas de países desenvolvidos, na verdade foi fruto da insistência de mulheres latino-americanas presentes na conferência, lideradas pela cientista e diplomata brasileira Bertha Lutz. A conclusão vem do trabalho acadêmico de duas pesquisadoras da Universidade de Londres.
- Após consulta a documentos da época e às memórias escritas pelas poucas mulheres presentes na conferência, as pesquisadoras Elise Dietrichson e Fatima Sator concluíram que não apenas as latino-americanas foram responsáveis pelas menções à igualdade de gênero na Carta da ONU, como haviam enfrentado forte oposição de diplomatas norte-americanas e britânicas.
A Carta da ONU, documento elaborado durante a conferência de San Francisco (Estados Unidos) em 1945 que deu origem às Nações Unidas, foi um dos primeiros tratados internacionais a mencionar em seu texto a necessidade de igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Esse feito, por muito tempo atribuído a diplomatas de países desenvolvidos, na verdade foi fruto da insistência de mulheres latino-americanas presentes na conferência, lideradas pela cientista e diplomata brasileira Bertha Lutz. A conclusão vem do trabalho acadêmico de duas pesquisadoras da Universidade de Londres.
Após consulta a documentos da época e às memórias escritas pelas poucas mulheres presentes na conferência, as pesquisadoras Elise Dietrichson e Fatima Sator concluíram que não apenas as latino-americanas foram responsáveis pelas menções à igualdade de gênero na Carta da ONU, como haviam enfrentado forte oposição de diplomatas norte-americanas e britânicas.
Segundo as pesquisadoras, Bertha Lutz — com a ajuda de delegadas de Uruguai, México, República Dominicana e Austrália — reivindicou a inclusão da defesa dos direitos das mulheres na Carta e a criação de um órgão intergovernamental para a promoção da igualdade de gênero, enquanto a norte-americana Virginia Gildersleeve e assessoras britânicas se opuseram, classificando as propostas de “vulgares”.
Assista ao vídeo com imagens de Bertha Lutz e de outras diplomatas latino-americanas:
Para a diplomata dos EUA, as mulheres já estavam “bem estabelecidas” e a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres já era realidade nos EUA. Lutz respondeu durante os debates que “em nenhum lugar do mundo, havia igualdade completa de direitos com os homens”, e que havia sido encarregada pelo então governo Getúlio Vargas de defender justamente esse ponto na Carta da ONU.
Brasileira foi ridicularizada por diplomatas ocidentais
A feminista brasileira relatou em suas memórias que as diplomatas britânicas e norte-americanas chegaram a ridicularizá-la durante a Conferência de San Francisco, apelidando-a de “Lutzwaffe”, em referência à força aérea da Alemanha nazista.
De acordo com as memórias de Lutz, as diplomatas estavam “entediadas e irritadas com os longos e repetitivos discursos feministas” que, para a norte-americana Gildersleeve, eram desnecessários. No entanto, foram justamente esses discursos que garantiram a menção da igualdade de gênero no documento fundador da ONU, disseram as pesquisadoras da Universidade de Londres em seu trabalho.
Apenas quatro mulheres assinaram a Carta da ONU: Bertha Lutz (Brasil), Wu Yi-fang (China), Minerva Bernardino (República Dominicana) e Virginia Gildersleeve (EUA). Contudo, somente duas delas defenderam os direitos das mulheres: Lutz e Bernardino. Apesar disso, os livros de história creditam a todas elas a referência aos direitos das mulheres na Carta da ONU por conta de seu gênero, e não por suas ações.
“As delegadas latino-americanas eram as mais progressistas, suas posições foram determinantes para estabelecer o primeiro acordo internacional a declarar os direitos das mulheres como parte dos direitos humanos fundamentais”, disseram as pesquisadoras no trabalho entregue à Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS, na sigla em inglês), da Universidade de Londres.
A história não é algo que podemos só ler e confiar.
É político o que é conhecido e qual parte da história não é.
Em entrevista por telefone ao Centro de Informação da ONU para o Brasil (UNIC Rio), a norueguesa Elise Dietrichson afirmou que a intenção da pesquisa foi “reescrever a história” e dar o devido crédito às diplomatas latino-americanas, além de divulgar o trabalho da feminista Bertha Lutz, uma das principais sufragistas brasileiras.
“A ideia de que as mulheres ocidentais lideraram esse processo é totalmente equivocada”, disse Elise. “Isso ocorreu porque, frequentemente, as ideias vindas do Sul não são reconhecidas. (...) As relações internacionais são bastante eurocêntricas”, completou.
A importância das diplomatas latino-americanas é frequentemente negligenciada não somente por historiadores, como pelas próprias Nações Unidas em seus documentos de comunicação sobre a Conferência de San Francisco, de acordo com as pesquisadoras, que têm se comunicado com as equipes de Relações Públicas da ONU para mudar esse cenário. Em fevereiro, elas promoveram uma palestra em Nova York para divulgar o trabalho.
Segundo a pesquisadora norueguesa, a ONU Mulheres também têm dado espaço em suas redes sociais e sites para a divulgação da história e trabalho de Bertha Lutz na elaboração da Carta da ONU. A expectativa é de que seja realizada uma exposição sobre a brasileira este mês na sede da Organização em Nova York.
“A história não é algo que podemos só ler e confiar. É político o que é conhecido e qual parte da história não é”, disse Elise. “Por que o trabalho de Eleanor Roosevelt é conhecido e o de Bertha Lutz não está em nenhum livro de história quando falamos dos direitos das mulheres e da Carta da ONU?”, questionou. Eleanor Roosevelt não participou da elaboração da Carta, que ocorreu poucos meses depois da morte de seu marido, Franklin Delano Roosevelt.
Em entrevista por e-mail, a argelina Fatima Sator, que além de pesquisadora trabalha na ONU em Genebra, afirmou que alguns países do Sul tendem a assimilar o feminismo como uma ideia originada nos países desenvolvidos do Ocidente. “É importante mostrar como o feminismo não é uma invenção ocidental e que países não ocidentais precisam continuar lutando pela igualdade de gênero, como fizeram 71 anos atrás”, disse.
“Tendemos a ligar o feminismo e outras ideias progressistas ao crescimento econômico e desenvolvimento. Mas esses exemplos mostram que ideias avançadas não estão ligadas ao bem-estar econômico.”
Baixa participação feminina
O feito de Bertha Lutz é ainda mais importante quando verificado que apenas 3% dos 160 participantes da Conferência de San Francisco eram mulheres. Na época, elas só tinham direito de votar em 30 dos 50 países representados no evento convocado após a Segunda Guerra Mundial.
“Poucas pessoas na ONU atualmente sabem da contribuição da cientista e feminista brasileira Bertha Lutz e de outras participantes latino-americanas para o documento”, disseram as pesquisadoras no trabalho. “Isso ocorre porque a própria ONU não credita às mulheres latino-americanas o mérito pela inclusão dos direitos das mulheres na Carta”.
Uma de suas principais contribuições na Carta é o Artigo 8, segundo o qual “as Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres destinados a participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários”. A sugestão enfrentou a oposição da diplomata dos EUA, segundo a qual "as mulheres não seriam excluídas de participar da Organização de qualquer maneira".
Outras contribuições constam no próprio preâmbulo da Carta, que cita a igualdade de direito de homens e mulheres. Lutz fez questão de incluir a palavra “mulher” no texto, mesmo com colegas defendendo, na ocasião, que o trecho “direitos humanos para os homens” seria suficientemente inclusivo.
Lutz e outras feministas latino-americanas argumentaram ser “sabido que as mulheres têm sido incluídas no termo ‘homens’ ao longo dos séculos, e que isso sempre resultou no fato de que as mulheres foram impedidas de participar dos assuntos públicos”.
A inclusão dos direitos das mulheres no Artigo 1, que prevê como função da ONU “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” também foi fruto da influência de Lutz na conferência. Esse último princípio é reiterado quatro vezes em diferentes trechos da Carta.
De acordo com as pesquisadoras, Lutz e Bernardino tinham consciência de que estavam representando países mais pobres, enquanto as próprias assessoras britânicas e a diplomata norte-americana afirmavam que o “feminismo espetacular” atribuído a Lutz só seria necessário “em países atrasados, onde as mulheres não teriam voz e nenhum direito”, de acordo com as memórias de Gildersleeve.
“De fato, as feministas norte-americanas presumem hoje em dia que as delegadas norte-americanas teriam combatido o machismo latino-americano. Nada mais longe da verdade”, disseram. “As origem de ideias globais e valores como a igualdade de gênero são frequentemente creditadas a atores ocidentais, mesmo que esse crédito não esteja correto.”
“Betha Lutz e suas colegas precisam ser homenageadas amplamente como um reforço poderoso e necessário para o feminismo global.”
Memórias de Bertha
A cópia das memórias de Bertha Lutz foram encontradas pela pesquisadora brasileira Ana Carolina Sarmento na biblioteca da London School of Economics (LSE). Ela compartilhou a informação com o diretor do Centro de Estudos Internacionais e de Diplomacia da Universidade de Londres, Dan Plesch, que, posteriormente, informou Elise e Fatima.
“As memórias eram de cair o queixo. Bertha Lutz, uma mulher que nós nunca tínhamos ouvido falar, explicava como ela e outras mulheres ‘não ocidentais’ lutaram para que a igualdade de gênero fosse incluída na Carta da ONU”, disse Fatima. “E, mais surpreendente, foi ler que as delegadas norte-americanas e britânicas se opuseram à maior parte das ideias feministas promovidas pelas latino-americanas”.
Nascida em São Paulo em 1894, Bertha era filha do médico e cientista brasileiro Adolfo Lutz e da enfermeira britânica Amy Fowler. Formou-se em Biologia na Universidade de Paris, onde teve o primeiro contato com a campanha sufragista inglesa.
Ela retornou ao Brasil em 1918 e passou a atuar como bióloga no Museu Nacional, como a segunda mulher a entrar no serviço público brasileiro. Em 1919, criou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (PBPF). Representou as brasileiras na Liga das Mulheres Eleitoras, nos EUA, em 1922. Somente dez anos depois, em 1932, o voto das mulheres foi instituído no Brasil.
Bertha também atuou na Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde discutia problemas relacionados à proteção do trabalho da mulher. Trabalhou como deputada federal em 1936, defendendo igualdade salarial, licença-maternidade e redução da jornada de trabalho para as mulheres. Morreu no Rio de Janeiro em setembro de 1976, aos 84 anos.
Além de cientista, Lutz focava esforços na defesa dos direitos das mulheres na atuação como diplomata. Para as pesquisadoras da Universidade de Londres, seu papel na elaboração da Carta da ONU foi essencial para a construção da luta feminista no mundo.
“Podemos perguntar, se não fosse por Bertha Lutz e por outras mulheres latino-americanas, onde estaria a igualdade de gênero hoje?”, questionou Fatima.