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Dia da Visibilidade Intersexo: enfrentar preconceito, discriminação e falta de informação

26 outubro 2020

  • No Brasil, pelo menos 100 mil pessoas podem estar sofrendo por possuírem características intersexuais, como relata Camila (nome fictício), de 30 anos, uma pessoa intersexo que enfrenta a estigmatização marcada pelo preconceito, a discriminação e a falta de informação sobre a sexualidade. 
  • Pessoas intersexo nascem com características sexuais físicas — como anatomia sexual, órgãos reprodutivos, padrões hormonais e/ou padrões cromossômicos — que não se enquadram nas definições típicas para corpos masculinos ou femininos.
  • O relato feito por Camila no Dia da Visibilidade Intersexo (26 de outubro) para Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanoso mostra como pode ser difícil enfrentar esses desafios — que podem partir de dentro casa, na escola, na rua e até mesmo em consultórios médicos. Leia a íntegra de seu depoimento ao Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).
26 de outubro, Dia da Visibilidade Intersexo
Legenda: 26 de outubro, Dia da Visibilidade Intersexo
Foto: © Ilustração: Hugo de Carvalho

No Brasil, pelo menos 100 mil pessoas podem estar sofrendo por possuírem características intersexuais, como relata Camila (nome fictício), de 30 anos, uma pessoa intersexo que enfrenta a estigmatização marcada pelo preconceito, a discriminação e a falta de informação sobre a sexualidade. 

Pessoas intersexo nascem com características sexuais físicas — como anatomia sexual, órgãos reprodutivos, padrões hormonais e/ou padrões cromossômicos — que não se enquadram nas definições típicas para corpos masculinos ou femininos. Em alguns casos, características intersexuais são visíveis no nascimento, enquanto outras não são aparentes até a puberdade. Algumas variações cromossômicas intersexuais podem não ser fisicamente aparentes.

Segundo especialistas, entre 0,05% e 1,7% da população nascem com características intersexuais. Como seus corpos são vistos como diferentes, crianças e adultos intersexo são frequentemente estigmatizados e sujeitos a múltiplas violações de direitos humanos, incluindo violações de seus direitos à saúde e à integridade física, a ser livre de tortura e de maus tratos, e à igualdade e à não discriminação.

O relato feito por Camila no Dia da Visibilidade Intersexo (26 de outubro) mostra como pode ser difícil enfrentar esses desafios — que podem partir de dentro casa, na escola, na rua e até mesmo em consultórios médicos. Leia a íntegra de seu depoimento ao Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH):

“Eu fui socializada como uma pessoa pertencente ao gênero masculino, visto que tinha um pênis. O médico orientou minha família dizendo que o atraso no desenvolvimento do órgão era transitório, e que em breve tudo estaria normalizado. No máximo, segundo ele, futuramente eu teria de recorrer a um procedimento cirúrgico ou hormonal. Entretanto, a promessa do médico de que aquelas características desapareciam com o tempo não se cumpriu: as coisas só foram piorando e a minha feminilidade ficando cada vez mais evidente

Me lembro de muitas coisas em relação à minha percepção do genital e essa disforia de gênero [forte identificação com o gênero oposto] que eu sentia. Tenho lembranças desde meus 3 anos de idade! Mas foi na adolescência que tudo piorou. Essa foi a pior fase da minha vida. Nunca conheci uma cidade tão transfóbica e interfóbica dessa que me desenvolvi. Nessa fase, minha aparência física e minha forma de me comportar e de me relacionar era feminina, e as pessoas da cidade me notavam de maneira diferente, o que resultou em inúmeras perseguições, com inúmeros apelidos pejorativos — como ‘travequinho’, ‘bichinha’, ‘veadinho’ e ‘boiolinha’.

No colégio, durante o ensino fundamental, eu era perseguida de todas as maneiras possíveis. Seja por conta da minha aparência, seja pela minha forma de agir. Os meninos da escola me xingavam, cuspiam em mim e me assediavam sexualmente, passando a mão no meu corpo para ver se eu tinha ‘pepeca’ ou ‘pipi’. Por causa essa violência, eu evitava frequentar o banheiro masculino, pois se estivesse neste espaço, sofreria mais. O problema era que isso não se restringia somente aos meninos. As meninas também implicavam comigo, e muitas vezes eu era alvo de ameaças. Queriam jogar goma de mascar em meu cabelo. Diziam que meu cabelo era muito bonito e como menino aquilo não podia.

Quando fui levada ao médico e ele fez exames, foi detectado um déficit de testosterona. Daí no hospital fiz mais exames que detectaram minha falta de produção de testosterona pelos testículos. Muito provavelmente, o mínimo de testosterona que eu tinha era produzida pelas adrenais, glândulas que ficam acima dos rins e que, em homens e mulheres, também produzem testosterona. Estes eram estéreis, ou seja, não funcionavam. Nesse momento o médico disse que o tratamento era fácil. Que só precisaria fazer uma intervenção cirúrgica para adequar meu pênis — que os médicos entendiam como fora do padrão — e o restante seria tratado com testosterona, que eu teria de tomar para a vida toda, pois assim, segundo ele, eu teria um pênis ‘normal’. Eu, com todo esse sofrimento interno e não querendo aquilo, e eles ainda queriam que [o pênis] ficasse grande? Como assim? Mas óbvio que fugi com muito custo, inclusive com dificuldades para saúde e para encontrar alguém que me atendesse. Acabei recorrendo à automedicação.

Com 14 anos iniciei minha TH [terapia hormonal] com estrogênios e, como eu não tinha presença significativa de nenhum dos hormônios sexuais, foi um ‘boom’ quando iniciei a terapia. Meu corpo se desenvolveu rapidamente. Meus seios terminaram de se desenvolver e meu corpo também: quadril largo, os ossos, suas estruturas e a musculatura. Até meu exame de sangue, que tem os níveis celulares de homens e mulheres, estavam todos no feminino e não mais nos níveis infantis como costumavam estar. Como não poderia ser diferente, havia nessa época alunos que me conheciam de antes (do ensino fundamental). Minha troca de roupas foi bem nesse período. Daí começou a sessão humilhação — algo que não falta na vida de uma pessoa trans e intersexo. Ganhei o apelido de ‘Bernadete’, em referência à personagem de uma novela que ia ao ar naquela época [‘Chocolate com Pimenta’]. Fizeram bandeiras escrito ‘BERNADETE’, construíram uma câmera e quando eu chegava na escola, começavam a ir atrás de mim, como se fossem entrevistar a ‘Bernadete’ da escola. E isso não parou aí: nesse primeiro momento, muitos alunos me xingavam, jogavam coisas em mim, tentavam acertar goma de mascar em meu cabelo, entre outras coisas.

Até que um dia precisei usar o banheiro. Não aguentava mais ficar toda vez segurando e, quando usei o feminino, para evitar o assédio dos guris do banheiro masculino, invadiram o espaço, instigados por um grupo de meninas que me viram entrar. Entraram e tentaram me tirar a força do banheiro e até arrancar minha roupa para verificar o que realmente eu era, mas foram contidos por outras meninas que estavam no banheiro e me protegeram para que não fizessem isso comigo. Me emociono ao lembrar disso, sabe?

Frequentar banheiros públicos é um desafio para pessoas intersexo
Legenda: Frequentar banheiros públicos é um desafio para pessoas intersexo
Foto: © Ilustração: Hugo de Carvalho

A escola não sabia muito como lidar com a questão, então, me tratavam no masculino — mesmo meu nome sendo ambíguo —, até eu conseguir ser tratada no feminino. Ah! E eu não podia esquecer que, logo após estes acontecimentos, a direção da escola interveio dizendo que as pessoas deveriam ser respeitadas como são. Contudo, eles mesmos me entendiam como uma pessoa homossexual.

No bairro, eu já bem feminina, a violência só aumentou. Na rua, as pessoas me perseguiam, jogavam pedras quando eu passava, recebia olhares de reprovação na rua, no ônibus, no posto de saúde. Recebia cusparadas de muitas senhoras, senhores e jovens. Além dos xingamentos de ‘traveco’ e ‘aberração’. O que mais me espantava nisso tudo era que muitos meninos, que me humilhavam publicamente, queriam ter relação afetivo-sexual comigo escondidos. Faziam proposta de encontros secretos, perguntavam sobre meu genital e sobre meu ‘dote’ e é obvio que eu fugia, né. Isso acontecia no colégio, na rua, em todos os espaços que eu frequentava. Em relação às meninas, não entendia o porquê daquela discriminação. Eu estava totalmente feminina e elas não aceitavam isso, queriam me rebaixar, era lamentável. Chegou um momento em que parei de andar sozinha no bairro, pois era impossível devido a todas as violências que sofria. Eu chamava meus poucos amigos(as) para me acompanharem nos lugares, quando algum familiar não podia ir comigo. Até mesmo na padaria tinha que ir com alguém para não sofrer violência física. Meus pais me levavam e buscavam em todos os lugares. Minha retificação dos documentos foi uma coisa que demorou muito tempo para acontecer. Contudo, como eu tinha um nome ambíguo, conseguia passar com certa tranquilidade pela maioria das situações que exigiam a apresentação de documento. 

Vale lembrar que ainda estávamos em 2008, ano do início do processo transexualizador no SUS [Sistema Único de Saúde, criado por meio da Portaria 1707/2008]. Eu estava com 18 anos e mais uma vez minha intersexualidade e transexualidade se cruzam, o que de certa forma criou brechas para facilitar minha cirurgia de readequação sexual. Por ser intersexual, poderia fazer uma cirurgia antes dos 18 se meus documentos correspondessem com o sexo que pretendia. Caso contrário, só depois dos 18 anos. Já em relação à transexualidade, que eu também apresentava, só podia ser com 21 anos, já que precisaria fazer a transgenitalização [também chamada de ‘redesignação sexual’, é a cirurgia feita com o objetivo de adequar as características físicas e dos órgãos genitais para que uma pessoa possa ter o corpo adequado à sua identificação sexual]. Como eu disse, a portaria do processo transexualizador tinha acabado de ser aprovada, então era tudo muito novo no Brasil. Porém, a minha cirurgia aconteceu via processo intersexual, mas eu consegui ter o acompanhamento do médico que fazia a transgenitalização do processo transexualizador. Na época, eu tinha 20 anos, quase 21, e em meados de 2010 foi meu novo nascimento: agora, totalmente resignada ao meu sexo verdadeiro, o sexo psíquico. No mesmo ano ocorreu minha retificação dos documentos e agora sou mulher também oficialmente nos documentos.”

 

 

Entidades da ONU envolvidas nesta atividade

ACNUDH
Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos

Objetivos que apoiamos através desta iniciativa