Escutar, conversar e entender para transformar: as lições de Mena para a ONU
A brasileira que trabalhou com jovens durante a guerra da Bósnia e Herzegovina
Segunda é dia de feira para Mena. Hoje, quem vê a sacola com os hortifrutis sendo carregada pelas travessas do Araújo -- pequena ilha a dez quilômetros da cidade histórica de Paraty, no Rio de Janeiro —sequer desconfia que pouco menos de três décadas atrás a aposentada lutava para esconder um mísero tomate na bolsa.
Era no trajeto mensal entre Paris e Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina, que ela tinha a única oportunidade para comer frutas e verduras frescas, em 1994. “Voltava com o tomate na bagagem e nunca vi um render tanto. Usávamos a técnica espanhola: esfregar as poucas fatias no pão, só para passar um pouco do gostinho”, lembra Mena.
O apelido encurta um nome comprido: Maria Helena Fernandes da Trindade Henriques Mueller. A preferência pela versão curta, tanto na vida profissional quanto pessoal, segue a mesma “escola” de simplicidade e informalidade adotada pelo colega de operações em Sarajevo, Sérgio Vieira de Mello. Enquanto o mais famoso diplomata brasileiro participava das negociações para colocar fim à guerra que vitimou mais de 97 mil pessoas, Mena carregava a complexa missão de unir os três grupos em conflito, através de uma identidade cultural que pudesse ser compartilhada e que mudasse a imagem da tragédia.
Oficialmente, era chefe do escritório emergencial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na Bósnia e Herzegovina. Na prática, o espaço que Mena tinha para carregar tomates era limitado porque a bagagem incluía câmeras, microfones e todo o resto necessário para montar uma emissora de televisão local em plena guerra.
Além disso, os aviões transportavam artistas, jornalistas, ativistas e educadores que tinham como missão provar ao povo iugoslavo e ao resto do mundo que ainda havia vida no país conflagrado e que essa vida precisava ser apoiada. “Quando chegamos ao país era difícil convencer as pessoas que elas não estavam mortas. Sobretudo os jovens. Era um trabalho psicológico enorme incentivá-los a continuarem mantendo suas vidas e com esperança suficiente para construir algo”.
Os 14 meses que Mena passou na guerra a convenceram de que, de volta a Paris, deveria dedicar seus esforços para promover projetos dedicados a juventude-- grupo que ela considerava concentrar o maior número de vítimas do conflito no leste europeu. Entre 1995 e 2007, a doutora em demografia pela Universidade de Harvard coordenou as atividades da UNESCO para juventude e chefiou a seção de juventude, dentro do Departamento de Planejamento Estratégico da mesma instituição, cargos que ocupou até se aposentar. O ápice destas atividades foi em 2005, quando comandou por 10 meses o pavilhão das Nações Unidas na Exposição Universal, na província japonesa de Aichi.
Ao longo da carreira, Mena organizou dezenas de fóruns regionais e mundiais, desenvolveu indicadores específicos para a população jovem e projetos que os uniram em torno de causas geracionais. “Por um bom tempo, a UNESCO passou a ser uma espécie de decana da juventude, pela maneira como conseguimos engajar esses grupos em torno de grandes causas e por contarmos com equipes multidisciplinares para tratar destes assuntos. Hoje sabemos que a juventude é movida por causas e até então não tínhamos como medir o impacto disso, porque não existiam relatórios específicos que tratassem desse tipo de ação”, conta.
A forma de trabalhar com equipes de diferentes áreas de conhecimento e em vários idiomas a fim de obter mais de uma solução e perspectiva para desafios globais está no centro do trabalho que Mena realizou dentro do sistema da ONU e faz parte dos valores da própria instituição. É por isso que no mês de aniversário das Nações Unidas, a ex-funcionária - que tem a mesma idade da Organização - celebra o multilateralismo e a missão de promover a diplomacia.
“Trabalhar na ONU me mostrou que não há uma verdade fundamental. Cada cultura, cada pessoa, enxerga a realidade de uma forma diferente. E daí a importância de conversar, escutar e entender para poder transformar. Este é um ingrediente fundamental para o staff que é formado dentro do sistema e que levamos para a vida. Sabemos o poder da escuta e da gratidão”, explica.
Diante dos desafios que o mundo enfrenta atualmente, Mena acredita que instituições multilaterais como a ONU terão seu protagonismo e liderança reafirmados. “O psiquiatra que incendiou a biblioteca de Sarajevo, Radovan, costumava dizer que a Bósnia marcaria o fim das Nações Unidas. A Organização mostrou sua resiliência lá e continua nos mostrando que, mesmo com queixas e desafios maiores, é fundamental que exista um organismo multilateral com vontade e compromisso para liderar as renovações necessárias em um mundo tão conturbado”, completa.
Aniversário - A ONU completa 76 anos no próximo dia 24 de outubro. Para marcar a data, a ONU Brasil conta semanalmente a trajetória profissional de pessoas que ajudaram a construir a história da instituição no país.