Direito à cidade amplifica voz de jovens em grotas de Alagoas
"A força das juventudes é a força da mudança. Quando a gente compartilha conhecimento, a gente muda o mundo."
Pelas ruas da Vila Emater II, grota no bairro de Jacarecica, em Maceió, muitos nomes levam até ele. "Menino da ONU", “Skalybul” e até "Nino”. Todos eles se referem à mesma pessoa: Antônio Givaldo.
Antônio acabou de completar 18 anos. De frente ao espelho na parede do quarto, retocando a maquiagem, apresentou cada uma dessas identidades. Citá-las é também uma forma de reafirmar: a ele, não cabem uniformizações.
Quando criança, Antônio desenhava com as cascas do sururu pescado por seu pai. Os desenhos eram expostos na parede do quarto transformado em galeria. Ali perto, um mirante emoldurava um cenário digno de artista. O mar azul-piscina da Praia de Jacarecica se funde ao céu azul-claro, dando vida às “joias tão caras” de Alagoas cantadas por Luiz Gonzaga.
Os arredores do mirante, no entanto, evidenciam contradições. Antônio cresceu na Vila Emater II, uma grota – nome dado às favelas em Maceió, locais com os mais desafiadores Índices de Desenvolvimento Humano do Brasil. Assim como Antônio, é impossível uniformizá-las. Uma das particularidades da Vila Emater II é ter sido vizinha do antigo lixão da cidade por muitos anos.
O pequeno artista ainda não enxergava a cisão entre orla e grota. As calçadas da praia vistas do mirante pareciam tão disponíveis quanto as ruelas da vila. Ele compartilha as lembranças das brincadeiras no lixão com afeto na voz e sorriso no rosto. Hoje, ele entende o lixão como símbolo dessas contradições.
"Se você é membro de uma sociedade e não tem direitos, o que você é?"
De forma natural, Antônio divide sua comunidade entre antes e depois de 2010, quando o lixão foi desativado e as primeiras ações culturais chegaram. "Nossa comunidade começou a ser vista. Chegou circo, bumba meu boi, coco de roda, o coral". O artista de casca de sururu encontrou espaço para se multiplicar e criar novas memórias sobre o território -- memórias afetivas, como antes, mas agora também de oportunidades.
Por isso, Antônio entendia sobre direito à cidade antes de conhecer conceitos acadêmicos. Observar a transformação da comunidade por meio da cultura o despertou a buscar paisagens de Maceió nunca apresentadas a ele. "Quando você é um jovem periférico e passa a entender isso, muita coisa muda. A forma como você age no seu território muda."
Ao longo dos anos, grota e orla se tornaram cidades diferentes para Antônio, assim como as experiências de juventude em cada uma delas. Nesse momento, Antônio se reconheceu um jovem periférico, negro e LGBTI+. Essas identidades se somaram aos seus nomes desenhando os caminhos do jovem pela cidade.
Ele já era um multiartista atento à cidade onde vivia quando conheceu o Digaê. As oficinas realizadas pela iniciativa deram nome às inquietações: direito à cidade. O Digaê! – Juventudes, Comunicação e Cidade é resultado da parceria entre ONU-Habitat e Governo de Alagoas, com apoio do Instituto Pólis e Viração Educomunicação, e capacitou mais de 80 jovens das grotas de Maceió no tema, além de oferecer mentorias sobre linguagens de comunicação.
O conceito se transformou em ferramenta. No início da adolescência, Antônio e Dona Terezinha mudaram de casa porque não havia escolas por perto. A lembrança denuncia uma vida sem o "direito à cidade" apresentado a ele. "Direito à cidade é tudo. É trabalho, escola, colocar comida na mesa. É o direito à vida."
Ser jovem negro também ganhou outro significado. Antônio entendeu que existiam locais onde meninos como ele não circulavam sem receio da violência policial.
"Vários jovens negros periféricos têm dificuldade de voltar pra casa à noite sem serem abordados por serem negros. Quando você conhece o direito à cidade, não permite isso".
Hoje, o conceito guia os desejos de Antônio para a comunidade. "O que falta é o conhecimento e a oportunidade. Tem muito jovem que não sabe o que é direito à cidade, não consegue pensar no futuro". Nas oficinas do Digaê, Antônio pode se apropriar do chão que também era seu e reivindicar outras vivências. "Quando a oportunidade chega até você, você tem que agarrar, e foi isso o que eu fiz com o Digaê."
As múltiplas faces de Antônio personificam uma característica fundamental das juventudes: é impossível tratá-las no singular. Múltiplas identidades reforçam diferentes necessidades. O Digaê! surgiu por reconhecer uma lacuna importante na participação das juventudes nos espaços de tomada de decisão. O impacto em Antônio exemplifica o objetivo da iniciativa: incentivar as juventudes das grotas a se apropriarem das histórias sobre os locais de onde elas vêm. A voz, elas já tinham; era preciso amplificá-la.
A arte também virou ferramenta. As técnicas de comunicação aprendidas durante o Digaê! permitiram a criação de diversos materiais audiovisuais produzidos por mais de 80 jovens participantes. Antônio lembrou, encantado, da experiência de conhecer 32 grotas diferentes por meio das histórias de jovens, à primeira vista, muito similares a ele.
Caminhar, registrar e debater a cidade eram parte dos exercícios de entender aquelas ruas não só pelas linhas do mapa, mas com as lentes da subjetividade de um território político. Antônio imprimiu essas experiências no documentário "Eu (r)existo: vivências LGBTQIA+ periféricas", realizado durante o programa. O filme traduz a simbiose entre a construção de identidades humanas e as identidades do território. Para além de quatro protagonistas jovens, há uma quinta participação essencial para o roteiro: a comunidade.
Os olhos de Antônio brilharam com a experiência. Dona Terezinha costuma dizer que o interesse é a base de tudo, inclusive dos sonhos de um futuro. E Antônio viveu isso.
"Eu conheci uma educomunicadora no projeto que fez Relações Públicas, e foi quando eu pesquisei sobre o curso e decidi: 'é isso o que eu vou fazer'. O Digaê me ajudou a encontrar meu curso na faculdade".
Antônio sonhou um futuro que já se tornou realidade: em 2024, foi aprovado na Universidade Federal de Alagoas.
Esse foi apenas um dos sonhos forjados pelo interesse de Antônio. Com um pincel de maquiagem na mão, ele apontou para algumas fotos que hoje substituem os desenhos em sua parede e confidenciou: "Ali são alguns projetos que eu participei. Esse ano, vem mais uns três pela frente. Vem muita coisa bacana, muito conhecimento, muita diversidade. É tão bom quando você consegue compartilhar conhecimento com tantas outras pessoas".
Dona Terezinha criou Antônio para transformar interesse em sonho e sonho em futuro. Agora, Antônio sonha um futuro compartilhado. "A força das juventudes é a força da mudança. Quando a gente compartilha conhecimento, a gente muda o mundo. E eu acredito que o mundo vai mudar. Eu acredito".
Para saber mais, siga @onuhabitatbrasil nas redes e visite a página do Digaê: https://visaoalagoas2030.al.gov.br/projetos/capacidades-e-oportunidades/programa-digae