Abertura do Debate Geral da 79ª sessão da Assembleia Geral da ONU
Discurso do secretário-geral da ONU, António Guterres, durante a abertura do Debate Geral da 79ª sessão da Assembleia Geral, em 24 de setembro de 2024.
Sr. Presidente da Assembleia Geral, Excelências, senhoras e senhores,
Nosso mundo está em um turbilhão.
Estamos em uma era de transformação épica, enfrentando desafios como nunca vimos antes, desafios que exigem soluções globais.
No entanto, as divisões geopolíticas continuam se aprofundando. O planeta continua esquentando.
As guerras continuam sem nenhuma pista de como terminarão.
E a postura nuclear e as novas armas lançam uma sombra escura.
Estamos nos aproximando do inimaginável - um barril de pólvora que corre o risco de engolir o mundo.
Enquanto isso, 2024 é o ano em que metade da humanidade vai às urnas - e toda a humanidade será afetada.
Estou diante de vocês nesse turbilhão, convencido de duas verdades fundamentais.
Primeiro, o estado do nosso mundo é insustentável.
Não podemos continuar assim.
E, segundo, os desafios que enfrentamos têm solução.
Mas isso exige que nos certifiquemos de que os mecanismos de solução de problemas internacionais realmente os resolvam.
A Cúpula do Futuro foi um primeiro passo, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.
Para chegar lá, é necessário enfrentar três grandes fatores de insustentabilidade.
Um mundo de impunidade - em que as violações e os abusos ameaçam a própria base do direito internacional e da Carta das Nações Unidas.
Um mundo de desigualdade - em que as injustiças e as queixas ameaçam minar os países ou até mesmo levá-los ao limite.
E um mundo de incertezas - em que riscos globais não gerenciados ameaçam nosso futuro de maneiras desconhecidas.
Esses mundos de impunidade, desigualdade e incerteza estão conectados e em colisão.
Excelências,
O nível de impunidade no mundo é politicamente indefensável e moralmente intolerável.
Hoje, um número cada vez maior de governos e outras pessoas acham que podem sair impunes de seus crimes.
Eles podem atropelar o direito internacional.
Eles podem violar a Carta das Nações Unidas.
Podem fechar os olhos para as convenções internacionais de direitos humanos ou para as decisões de tribunais internacionais.
Eles podem ignorar o direito humanitário internacional.
Podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou desconsiderar totalmente o bem-estar de seu próprio povo.
E nada acontecerá.
Vemos essa era de impunidade em todos os lugares: no Oriente Médio, no coração da Europa, no Chifre da África e além.
A guerra na Ucrânia está se alastrando sem sinais de enfraquecimento.
Os civis estão pagando o preço - com o aumento do número de mortos e vidas e comunidades destruídas.
É hora de uma paz justa baseada na Carta da ONU, no direito internacional e nas resoluções da ONU.
Enquanto isso, Gaza é um pesadelo ininterrupto que ameaça levar toda a região com ele.
Basta olhar para o Líbano.
Todos nós deveríamos ficar alarmados com a escalada.
O Líbano está à beira do abismo.
O povo do Líbano, o povo de Israel e o povo do mundo não podem permitir que o Líbano se torne outra Gaza.
Sejamos claros.
Nada pode justificar os atos de terror abomináveis cometidos pelo Hamas em 7 de outubro, ou a tomada de reféns - ambos condenados por mim repetidamente.
E nada pode justificar a punição coletiva do povo palestino.
A velocidade e a escala da matança e da destruição em Gaza são diferentes de tudo o que aconteceu em meus anos como Secretário-geral.
Mais de 200 de nossos próprios funcionários foram mortos, muitos deles com suas famílias.
Mesmo assim, as mulheres e os homens das Nações Unidas continuam a prestar ajuda humanitária.
Sei que vocês se juntam a mim para prestar um tributo especial à UNRWA e a todos os profissionais de ajuda humanitária em Gaza.
A comunidade internacional deve se mobilizar para um cessar-fogo imediato, a libertação imediata e incondicional de todos os reféns e o início de um processo irreversível rumo a uma solução de dois Estados.
Para aqueles que continuam a minar esse objetivo com mais assentamentos, mais apropriação de terras, mais incitação - eu pergunto:
Qual é a alternativa?
Como o mundo poderia aceitar um futuro de um Estado no qual um grande número de palestinos seria incluído sem qualquer liberdade, direitos ou dignidade?
No Sudão, uma luta brutal pelo poder desencadeou uma violência terrível, incluindo estupros e agressões sexuais generalizadas.
Uma catástrofe humanitária está se desenvolvendo à medida em que a fome se espalha. No entanto, potências externas continuam a interferir sem uma abordagem unificada para encontrar a paz.
No Sahel, a expansão dramática e rápida da ameaça terrorista exige uma abordagem conjunta com base na solidariedade, mas a cooperação regional e internacional foi interrompida.
De Mianmar à República Democrática do Congo, do Haiti ao Iêmen e além - continuamos a ver níveis terríveis de violência e sofrimento humano em face de uma incapacidade crônica de encontrar soluções.
Enquanto isso, nossas missões de manutenção da paz estão operando com muita frequência em áreas onde simplesmente não há paz para manter.
A instabilidade em muitos lugares do mundo é um subproduto da instabilidade nas relações de poder e nas divisões geopolíticas.
Apesar de todos os seus perigos, a Guerra Fria tinha regras.
Havia linhas diretas, linhas vermelhas e barreiras de proteção.
Pode parecer que não temos isso hoje.
Tampouco temos um mundo unipolar.
Estamos nos movendo para um mundo multipolar, mas ainda não chegamos lá.
Estamos em um purgatório de polaridade.
E nesse purgatório, mais e mais países estão preenchendo os espaços das divisões geopolíticas, fazendo o que querem sem nenhuma responsabilidade.
É por isso que é mais importante do que nunca reafirmar a Carta, respeitar o direito internacional, apoiar e implementar as decisões dos tribunais internacionais e reforçar os direitos humanos no mundo.
Em qualquer lugar e em toda parte.
Excelências, senhoras e senhores,
O aumento da desigualdade é um segundo fator de insustentabilidade e uma mancha em nossa consciência coletiva.
A desigualdade não é uma questão técnica ou burocrática.
Em sua essência, a desigualdade é uma questão de poder, com raízes históricas.
Os conflitos, as mudanças climáticas e a crise do custo de vida estão ampliando ainda mais essas raízes históricas.
Ao mesmo tempo, o mundo ainda está lutando para se recuperar do aumento da desigualdade causado pela pandemia.
Se analisarmos os 75 países mais pobres do mundo, um terço deles está em situação pior hoje do que há cinco anos.
No mesmo período, os cinco homens mais ricos do planeta mais do que dobraram suas fortunas.
E 1% da população mundial detém 43% do total de ativos financeiros do mundo.
Em nível nacional, alguns governos estão aumentando a desigualdade em dez vezes, concedendo grandes isenções fiscais às empresas e aos ultra-ricos em detrimento do investimento em saúde, educação e proteção social.
E ninguém sofre mais do que as mulheres e meninas em todo o mundo.
Excelências,
A discriminação e a violência gênero generalizadas são a forma de desigualdade mais difundida em todas as sociedades.
Todos os dias, parece que nos deparamos com novos e terríveis casos de feminicídio, violência de gênero e estupro coletivo, tanto em tempos de paz, quanto como arma de guerra.
Em alguns países, as leis são usadas para ameaçar a saúde e os direitos reprodutivos.
E no Afeganistão, as leis estão sendo usadas para consolidar a opressão sistemática de mulheres e meninas.
E lamento constatar que, apesar de anos de belos discursos, a desigualdade de gênero ainda está presente, e se manifesta plenamente aqui nesta Plenária
Menos de 10% das pessoas que vão discursar no Debate Geral são mulheres.
Isso é inaceitável, especialmente quando sabemos que a igualdade entre homens e mulheres contribui para a paz, o desenvolvimento sustentável, a ação climática e muito mais.
É exatamente por isso que tomamos medidas específicas para alcançar a paridade de gênero entre os altos executivos das Nações Unidas, uma meta que já foi alcançada.
Isso pode ser feito.
Peço que as instituições políticas e econômicas do mundo, dominadas por homens, façam o mesmo.
Excelências,
As desigualdades globais são refletidas e reforçadas até mesmo em nossas próprias organizações internacionais.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas foi concebido pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Naquela época, a maior parte do continente africano ainda estava sob domínio colonial.
Até hoje, a África ainda não tem assento permanente no principal órgão pacificador do mundo.
Isso precisa mudar.
O mesmo se aplica à arquitetura financeira global, que foi criada há 80 anos.
Parabenizo os líderes do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional pelas importantes medidas que tomaram.
Mas, como enfatiza o Pacto para o Futuro, a luta contra a desigualdade exige uma reforma acelerada da arquitetura financeira internacional.
Nas últimas oito décadas, a economia global cresceu e mudou.
As instituições de Bretton Woods não acompanharam esse ritmo.
Elas não são mais capazes de fornecer uma rede de segurança global, nem de oferecer aos países em desenvolvimento o nível de apoio de que tanto necessitam.
Nos países mais pobres do mundo, o custo dos juros da dívida excede, em média, o custo do investimento em educação, saúde e infraestrutura pública juntos.
E, em todo o mundo, mais de 80% das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável não estão no caminho certo.
Excelências,
Para retomar o caminho certo, é necessário aumentar o financiamento para a Agenda 2030 e o Acordo de Paris.
Isto envolve os países do G20 liderando um estímulo aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 500 bilhões de dólares por ano.
Isso envolve reformas para aumentar substancialmente a capacidade de empréstimo dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento - e permitir que eles ampliem maciçamente o financiamento de longo prazo acessível para o clima e o desenvolvimento.
Isso envolve a expansão do financiamento de contingência por meio da reciclagem de Direitos Especiais de Saque.
E significa promover a reestruturação da dívida de longo prazo.
Excelências,
Não tenho ilusões sobre as barreiras à reforma do sistema multilateral.
Aqueles com poder político e econômico, ou aqueles que acham que o têm, sempre relutam em mudar.
Mas o status quo já está esgotando seu poder.
Sem reforma, a fragmentação é inevitável, e as instituições globais perderão legitimidade, credibilidade e eficácia.
Excelências,
O terceiro fator determinante de nosso mundo insustentável é a incerteza.
O chão está se movendo sob nossos pés.
Os níveis de ansiedade estão fora dos padrões.
E os jovens, em especial, estão contando conosco e buscando soluções.
A incerteza é agravada por duas ameaças existenciais - a crise climática e o rápido avanço da tecnologia - em particular, a Inteligência Artificial.
Excelências,
Estamos em um colapso climático.
Temperaturas extremas, incêndios violentos, secas e enchentes épicas não são desastres naturais.
São desastres humanos, cada vez mais alimentados por combustíveis fósseis.
Nenhum país é poupado. Mas os mais pobres e mais vulneráveis são os mais atingidos.
Os riscos climáticos estão abrindo um buraco nos orçamentos de muitos países africanos, custando até cinco por cento do PIB - todos os anos.
E isso é apenas o começo.
Estamos prestes a ultrapassar o limite global de um aumento de temperatura de 1,5º.
Mas, à medida que o problema se agrava, as soluções estão melhorando.
Os preços das energias renováveis estão caindo, a implantação está se acelerando e vidas estão sendo transformadas por energia limpa acessível e barata.
As energias renováveis não geram apenas energia. Elas geram empregos, riqueza, segurança energética e um caminho para milhões de pessoas saírem da pobreza.
Mas os países em desenvolvimento não podem ser condenados nessa jornada.
Nosso Painel sobre Minerais Críticos recomendou formas justas e sustentáveis de atender à demanda global por esses recursos, que são essenciais para a revolução das energias renováveis.
Excelências,
Um futuro sem combustíveis fósseis é certo. Uma transição justa e rápida, não.
Isso está em suas mãos.
Até o próximo ano, todos os países devem produzir um novo e ambicioso plano de ação climática nacional - ou Contribuições Nacionalmente Determinadas.
Esses planos devem reunir estratégias nacionais de energia, prioridades de desenvolvimento sustentável e ambições climáticas.
Eles devem se alinhar com o limite de 1,5º, abranger toda a economia e contribuir para cada uma das metas de transição energética da COP28.
Um relatório da Agência Internacional de Energia divulgado hoje detalha isso.
Até 2035, em média, as economias avançadas devem reduzir as emissões de energia em 80% e os mercados emergentes em 65%.
O G20 é responsável por 80% do total de emissões.
Eles devem liderar o esforço, mantendo o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e as respectivas capacidades à luz das diferentes circunstâncias nacionais.
Mas esse deve ser um esforço conjunto, reunindo recursos, capacidades científicas e tecnologias comprovadas e acessíveis para que todos possam atingir essas metas.
Tenho a honra de trabalhar em estreita colaboração com o presidente do Brasil, Lula - que é presidente do G20 e anfitrião da COP30 - para garantir o máximo de ambição, aceleração e cooperação. Acabamos de nos reunir com esse objetivo.
O financiamento é essencial.
A COP29 está chegando.
Ela deve apresentar uma nova meta financeira significativa.
Também precisamos de um Fundo para Perdas e Danos que atenda à escala do desafio - e que os países desenvolvidos cumpram suas promessas de financiamento da adaptação.
E precisamos finalmente inverter a ordem de uma situação maluca:
Continuamos a recompensar os poluidores para que destruam nosso planeta.
O setor de combustíveis fósseis continua a embolsar enormes lucros e subsídios, enquanto as pessoas comuns arcam com os custos da catástrofe climática, desde o aumento dos seguros até a perda de meios de subsistência.
Peço aos países do G20 que, ao invés de usarem dinheiro para subsídios e investimentos em combustíveis fósseis o usem para uma transição energética justa;
Coloquem um preço efetivo no carbono;
E que implementem fontes novas e inovadoras de financiamento - incluindo taxas de solidariedade sobre a extração de combustíveis fósseis - por meio de mecanismos transparentes e legalmente vinculantes.
Tudo isso até o próximo ano, levando em conta que aqueles que assumem a culpa devem pagar a conta.
Os poluidores devem pagar.
Excelências,
O rápido crescimento de novas tecnologias representa outro risco existencial imprevisível.
A Inteligência Artificial mudará praticamente tudo o que conhecemos - desde o trabalho, a educação e a comunicação até a cultura e a política.
Sabemos que a IA está avançando rapidamente, mas para onde ela está nos levando?
Para mais liberdade - ou mais conflito?
Para um mundo mais sustentável - ou para uma maior desigualdade?
Para sermos mais bem informados ou mais fáceis de manipular?
Muitas empresas e até mesmo indivíduos já acumularam um enorme poder sobre o desenvolvimento da IA, com pouca responsabilidade ou supervisão até o momento.
Sem uma abordagem global para seu gerenciamento, a inteligência artificial poderia levar a divisões fictícias por todos os lados - uma grande ruptura com duas Internet, dois mercados, duas economias - com cada país forçado a escolher um lado e enormes consequências para todos.
As Nações Unidas são a plataforma universal para o diálogo e o consenso.
Ela está em uma posição privilegiada para promover a cooperação em IA, com base nos valores da Carta e do direito internacional.
O debate global acontece aqui, ou não acontece.
Saúdo os primeiros passos importantes.
Duas resoluções na Assembleia Geral, o Pacto Digital Global e as recomendações do Órgão de Alto Nível sobre IA podem estabelecer as bases para uma governança inclusiva da IA.
Vamos avançar juntos para fazer da IA uma força para o bem.
Excelências,
Nada dura para sempre.
Mas uma característica da vida humana é que ela é mutável
A ordem atual parece sempre fixa.
Até que muda.
Em toda a história humana, vemos impérios surgindo e caindo; velhas certezas desmoronando; mudanças tectônicas nos assuntos globais.
Hoje, nosso curso é insustentável.
É do interesse de todos nós gerenciar as transformações épicas que estão ocorrendo; escolher o futuro que queremos e guiar nosso mundo em direção a ele.
Muitos disseram que as diferenças e divisões atuais são simplesmente grandes demais.
Que é impossível nos unirmos para o bem comum.
Vocês provaram que isso não é verdade.
A Cúpula do Futuro mostrou que, com um espírito de diálogo e compromisso, podemos unir forças para conduzir nosso mundo a um caminho mais sustentável.
Não é o fim.
É o início de uma jornada, uma bússola no meio do turbilhão.
Vamos continuar avançando.
Vamos levar o nosso mundo em direção a menos impunidade e mais responsabilidade .... menos desigualdade e mais justiça ... menos incerteza e mais oportunidade.
As pessoas do mundo estão olhando para nós - e as gerações seguintes olharão para nós.
Que elas nos encontrem do lado da Carta das Nações Unidas... do lado de nossos valores e princípios compartilhados... e do lado certo da história.
Obrigado.