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ONU: impunidade por tortura nas prisões é regra no Brasil

23 janeiro 2017

Brasil passará no ano que vem por Revisão Periódica Universal (RPU), exame internacional de direitos humanos. Foto: José Cruz/ABr
Legenda: ACNUDH pediu investigação imediata de massacres ocorridos em prisões brasileiras. Foto: José Cruz/ABr





Em entrevista ao site da revista Exame, o representante regional para América do Sul do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Amerigo Incalcaterra, afirmou que a impunidade em casos de tortura praticados por agentes públicos contra presos se tornou regra — e não exceção — no sistema penitenciário brasileiro.



Em nota publicada no início deste mês, o representante do ACNUDH já havia se manifestado sobre os massacres que têm ocorrido nos presídios brasileiros pedindo imediata investigação dos fatos, visando à atribuição de responsabilidades pela ação e omissão do Estado, que é o principal responsável pelos presos sob sua custódia.



Leia abaixo a entrevista concedida à jornalista Bárbara Ferreira Santos, da Exame.com.



EXAME.COM: O Subcomitê sobre a Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (SPT) da ONU entregou no fim do ano passado um relatório ao Ministério da Justiça do Brasil sobre o que foi apurado em 22 prisões do país. Em qual prazo o Brasil deve implementar as recomendações do documento?



Amerigo Incalcaterra: No dia 24 de novembro de 2016, o SPT entregou às autoridades brasileiras o relatório sobre sua última missão ao país. A partir desta data, o Brasil tem um prazo de seis meses para prestar contas das ações estatais levadas a cabo com vistas à implementação de suas recomendações, prazo que expira em maio. Embora não haja um prazo específico para a implementação das recomendações do Subcomitê, a resposta ao relatório também deverá incluir informação detalhada sobre como o país se compromete a implementar essas recomendações.



EXAME.COM: O documento aponta que a prática de tortura é frequente dentro dos presídios visitados. A ONU considera a violência nos presídios brasileiros como endêmica e generalizada?



Incalcaterra: Membros do SPT, assim como o Relator Especial [o advogado e jurista Juan Mendez] sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, puderam observar em suas visitas aos presídios no Brasil que a tortura é generalizada desde o momento da detenção, durante interrogatórios e em presídios.



Os especialistas ressaltaram que a tortura afeta de modo desproporcional pessoas de estratos sociais mais baixos, negros e minorias. No entanto, o relatório do SPT faz uma ressalva de que, enquanto o Brasil coleta dados sobre diferentes aspectos da população e sistema carcerários, informações sobre a incidência de tortura e tratamento cruel de pessoas privadas de liberdade não estão disponíveis. Os especialistas também alertam que, por medo a represálias, detentos são frequentemente persuadidos a não denunciar casos de tortura e tratamento cruel.



Outro aspecto importante ressaltado é que a impunidade em casos de tortura por agentes públicos no Brasil continua sendo a regra, e não a exceção, o que contribui para que se crie um clima de impunidade que alimenta a continuação de violações de direitos humanos.



Medidas tais como a pronta investigação de mortes por agentes estatais, capacitação profissional em direitos humanos, a adoção de protocolos oficiais sobre o uso da força da polícia, a revisão dos salários da força policial, garantir a independência dos Institutos Médicos Legais e um controle eficaz de empresas privadas envolvidas na administração de funções policiais são algumas das medidas propostas pelos especialistas para combater a prática da tortura no Brasil.



EXAME.COM: Quais foram as práticas de tortura e violações de direitos humanos encontradas pelo subcomitê nos presídios visitados?



Incalcaterra: O SPT constatou que a superlotação endêmica, as condições chocantes de detenção, os problemas de assistência médica aos presos, a falta de acesso à educação, a violência generalizada entre detentos e a falta de supervisão adequada dos presos (o que leva à impunidade) são alguns dos problemas principais ainda não resolvidos pelo Brasil para enfrentar a crise prisional e combater a tortura nos presídios.



Em suas visitas a diferentes delegacias, prisões, centros de detenção provisória, instalações para adolescentes e hospitais penitenciários, o Subcomitê encontrou uma atmosfera geral de intimidação e repressão.



Relatos de detentos sujeitando outros detentos à tortura e facções criminosas com significante controle de certos presídios são frequentes, segundo esses especialistas internacionais. O SPT e o relator especial receberam relatos de prática de tortura e tratamento degradante e cruel durante apreensões e em presídios que envolvem o uso de choques elétricos, balas de borracha, sufocamento, espancamento com barras de ferro e palmatória, técnicas conhecidas como telefone — que consiste em dar golpes na orelha da vítima — e o pau arara. Segundo ressaltou o relator especial, o objetivo desses atos seria obter uma confissão, pagamento de suborno, ou uma forma de castigo ou intimidação.



EXAME.COM: O relatório da ONU aponta ainda que metade dos 565 presos mortos em 2014 no Brasil foi assassinada. O Brasil tem fechado os olhos para os assassinatos dentro das prisões?



Incalcaterra: É importante notar que os dados de 2014 são seis vezes maiores que os dados de 2013 e que, como bem aponta o SPT em seu informe, aproximadamente metade dos 565 indivíduos que morrem enquanto privados de liberdade foram mortos intencionalmente.

A falta de esforços consistentes para documentar e investigar, processar e castigar delitos de tortura e mortes em presídios vão contra as disposições da Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, da qual o Brasil é parte.



De acordo com os artigos 12 e 13 de referida Convenção, o Estado deverá assegurar que suas autoridades competentes procederão imediatamente a uma investigação imparcial, sempre que houver motivos razoáveis para crer que um ato de tortura tenha sido cometido em qualquer território sob sua jurisdição.



EXAME.COM: Além disso, a falta de investigação no Brasil leva ao aumento da cultura da violência e da impunidade?



Incalcaterra: Exatamente, como já havia alertado o relator especial contra a tortura, o que institucionalizou a tortura é a continuidade do ciclo de impunidade em relação a essa prática.



EXAME.COM: Essas violações frequentes de direitos humanos nos presídios estimulam o crescimento das facções criminosas brasileiras dentro das cadeias?



Incalcaterra: As facções criminosas têm ganhado força pela falta de controle do Estado dentro das cadeias, tendo ramificações praticamente em todos os estados da federação.

Os altos níveis de superlotação e em geral as condições de detenção que relataram os especialistas alimentam a violência e as violações de direitos humanos no contexto penitenciário. O Sub-comitê comentou, por exemplo, que a superlotação exacerba os níveis de estresse nos detentos, o que resulta em comportamentos agressivos e um risco maior de violência entre detentos e também contra os funcionários.



Nesse sentido, o Sub-comitê recomendou ao Brasil aumentar a dotação de agentes penitenciários adequadamente treinados, além de profissionais médicos, para garantir a segurança dos detentos e dos funcionários, bem como para reduzir a influência do crime organizado no interior das prisões.



EXAME.COM: O que a ONU recomenda para as autoridades brasileiras? O que precisa ser feito?



Incalcaterra: A crise do sistema prisional no Brasil requer um forte compromisso político do mais alto nível de governança. O Brasil precisa enfrentar a crise do sistema prisional, que vem de longa data, através de políticas públicas e legislação em linha com os padrões internacionais.



As recomendações do SPT, do relator especial, e de outros mecanismos de proteção regional e universal de direitos humanos oferecem um sólido guia para a formulação de tais políticas. A superlotação dos presídios, o déficit de vagas, casos de tortura e rebeliões, o controle feito pelo crime organizado e a política de encarceramento são alguns dos principais pontos que o Brasil precisa enfrentar neste contexto.



O Brasil conta com um sistema de combate e prevenção à tortura, que inclui o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o que foi reconhecido como um desenvolvimento positivo pelos peritos do Sub-comitê. Alguns estados do país já criaram mecanismos preventivos contra a tortura, e os governos estaduais que ainda não o fizeram também devem estabelecer esse tipo de mecanismo.



Mas não basta apenas criar este tipo de órgão: eles devem ser implementados efetivamente e as autoridades devem garantir sua autonomia operacional e independência, bem como recursos adequados, para que seu trabalho de fiscalização possa ter um impacto verdadeiro para o melhoramento do sistema penitenciário do Brasil.